Digitalidade
A digitalidade emerge como o estado em que cultura e tecnologia se entrelaçam, remodelando práticas e demandas, exigindo reflexão crítica sobre as desigualdades e os interesses que moldam o acesso e a produção cultural.
Luciana Salazar Salgado e Rejane Rocha
Convencionou-se localizar entre as décadas finais do século XX e a primeira década do século XXI o processo que recebeu o nome de digitalização da cultura; um processo que concerne ao que tecnicamente se designa como numerização, ou seja, a transformação de produtos culturais em dados computáveis, o que acarretou uma série de outros efeitos relacionados à propagabilidade desses bens e produtos, bem como relacionados às possibilidades de sua apropriação, reciclagem e conversão em outros bens e produtos. A digitalização dos livros, por exemplo, que no início do século animou grandes projetos, possibilitou a criação de volumosas bibliotecas digitais e alterou as maneiras pelas quais acessamos os textos que fazem parte do repertório literário consolidado, alterando também as suas possibilidades de circulação e o que se oferecia ao exame da crítica literária. O caso da indústria fonográfica, cujo funcionamento foi modificado em todas as suas etapas, é um exemplo emblemático dos impactos causados pelo processo de digitalização em todo o funcionamento de um setor cultural específico.
Assim, o que no início do século se dava a ver como um processo, hoje já não pode mais ser compreendido dessa forma: se no início dos anos 2000 ainda era possível a existência de uma concepção que distinguia o que chamávamos de mundo “digital” (ou virtual) e mundo “real” (palavras que circulavam naquele momento para contrapor, no senso comum, uma coisa à outra), hoje essa separação já não faz mais sentido, justamente pelo fato de que grande parte dos produtos culturais não são mais concebidos e criados de forma analógica – ainda que possam se inscrever em material impresso.
É por causa dessa digitalização ampla e irrestrita dos produtos culturais, mas também de todo e qualquer aspecto da vida humana, que se pode adotar, então, o termo digitalidade. Não se trata mais de um processo, mas de um estado cuja definição não deve levar em conta apenas a numerização dos produtos culturais, mas também e sobretudo a maneira como ela tem sido levada a cabo, considerando-se sua localização geopolítica e histórica.
É nesse sentido que os seguintes aspectos podem ser elencados ao se definir a digitalidade: i) a busca incessante pelo engajamento que garante acessos e cliques e se pauta por uma tecnologia da adicção, desenvolvida, entre outras coisas, pela ii) construção de interfaces que promovem, de um lado, uma navegabilidade facilitada por meio de padronizações que caracterizam diferentes ‘serviços’ e, por outro lado, a entrega de um conteúdo personalizado, garantido por iii) expedientes algorítmicos desconhecidos dos usuários, mas tecnicamente de acordo com interesses que, ao mesmo tempo em que são detectados e atendidos, são motivados e construídos (cf. Rocha e Salgado, 2024).
Necessário sublinhar, então, que a digitalidade deve ser compreendida como o estado atual de possibilidades tecnológicas diversas, não como um desdobramento natural dessas possibilidades. É nesse sentido que a discussão sobre a digitalidade não prescinde de uma reflexão politicamente informada, que revele os interesses que produzem as desigualdades quando se trata do desenvolvimento e da apropriação das tecnologias digitais, bem como dos bens culturais produzidos a suas expensas.
COMO CITAR ESTE VERBETE:
SALGADO, Luciana; ROCHA, Rejane. In: CATRÓPA, Andréa; PEREIRA, Vinícius Carvalho; ROCHA, Rejane (Org.). Glossário LITDIGBR – Literatura Digital Brasileira. 2025. Disponível em: https://glossariolitdigbr.com.br/01-digitalidade/ Acesso em: dia/mês/ano.