Escritas digitais
As escritas digitais transformam a produção, a distribuição e a recepção de textos ao incorporar, entre outros recursos, hipertextualidade, multimodalidade e práticas colaborativas. Essa flexibilidade redefine autoria, leitura e os limites entre texto e tecnologia, refletindo a dinâmica cultural das redes digitais.
Andréa Catrópa da Silva
A digitalidade promoveu uma transformação profunda nas práticas de escrita e leitura, não apenas ao modificar os gêneros tradicionais impressos, mas, também, ao criar novas modalidades de interação com os códigos verbais. As escritas digitais emergem, assim, em um contexto no qual o uso das tecnologias que se disseminaram a partir de fins do século XX redefine tanto a produção, quanto a distribuição e o consumo textual, inaugurando formas inéditas de textualidade e reformulando práticas culturais estabelecidas.
Um dos elementos centrais e que surgiram como uma novidade das escritas digitais é a hipertextualidade. O hipertexto estimula a subversão da linearidade do texto impresso ao permitir que leitores naveguem de maneira não sequencial e construam trajetórias de leitura distintas daquelas propostas pelo(s) autor(es). Esse fator acaba por transformar a dinâmica textual e desafiar o paradigma tradicional de autoria e recepção, engajando o leitor como cocriador ativo do significado, e não apenas como seu consumidor.
Outro aspecto marcante da escrita digital é a multimodalidade. O uso de elementos multimodais combina a linguagem verbal com recursos visuais, auditivos e cinéticos, criando novas formas de significação. Isso é particularmente evidente em gêneros como a poesia hipermídia e a ficção interativa, que integram texto, imagem, som e movimento para oferecer experiências estéticas específicas do meio digital. Mesmo práticas periféricas ao cânone literário, como visual novels, memes, legendas e posts em redes sociais, bem como signos figurativos tais quais emojis, emoticons e stickers, demonstram como a escrita digital expande e altera os horizontes comunicativos e expressivos do texto impresso.
A digitalidade também facilitou práticas textuais colaborativas, como fanfictions, wikis, redes sociais, e plataformas de nichos específicos, como Blogger, Twine e Wattpad. Estas permitem que a escrita seja constantemente revisada e atualizada, configurando um processo autoral dinâmico e aberto. Isso contrasta com a impossibilidade de modificação dos textos impressos sem destruição física das páginas, já que a materialidade da página impressa confere ao texto um caráter definitivo: uma vez concluído, o conteúdo do livro não pode ser alterado sem danificar ou rasurar a obra física. Em contrapartida, o texto digital, materializado na tela como pixels, pode ser modificado e reescrito continuamente, sem qualquer destruição ou rasura física de seu veículo.
Essa distinção reflete as diferenças fundamentais entre o processo tipográfico tradicional, a impressão digital contemporânea e os textos projetados em tela. No passado, a escrita manuscrita e os textos copiados por copistas, sujeitos a erros e limitações do trabalho humano, representavam um processo lento e custoso. A invenção da prensa móvel, embora revolucionária ao permitir a reprodução em massa, ainda mantinha uma rigidez em relação ao conteúdo fixo do texto. A impressão digital e por demanda trouxe mais flexibilidade na quantidade de exemplares, mas não na imutabilidade do conteúdo fixado em tinta no papel. Já o texto digital, que é “renderizado” e não impresso, está em constante estado de potencial alteração, sendo projetado e somente visível por meio de dispositivos eletrônicos.
Assim, podemos conceber o texto digital não como um movimento em direção à “imaterialidade” — afinal, ele depende de infraestrutura física como computadores, tablets e leitores digitais —, mas como uma flexibilização dos modos de existência textual, possibilitada pela projeção da informação. A projeção, neste contexto, indica a natureza efêmera e mutável da exibição digital, em contraste com a estabilidade e permanência do impresso. A possibilidade de alteração contínua e de fruição imediata da produção, a colaboração entre autores e a adaptação ao contexto tornam o texto digital intrinsecamente dinâmico, fluidificando a relação entre produção, autoria e leitura.
É importante esclarecer que, embora a hipertextualidade, a multimodalidade, a escrita colaborativa e a possibilidade de fruição instantânea sejam aspectos que emergem com destaque nas escritas digitais, eles não são definidores nem obrigatórios nessas práticas. O que as caracteriza é fundamentalmente a potencialidade proporcionada pelas tecnologias do meio digital, mais do que a necessidade de incorporar determinados recursos ou estruturas.
As escritas digitais, portanto, não apenas introduzem novos gêneros, mas transformam a própria natureza do texto, da autoria e da leitura, dialogando com as mudanças culturais e técnicas contemporâneas. Estas redefinem não apenas como produzimos e compartilhamos textos, mas também como os leitores se posicionam em relação ao conteúdo, transformando a leitura em uma prática mais interativa, responsiva e integrada ao contexto das redes digitais. Como parte desse movimento, vai-se ampliando o escopo da área rumo a uma literatura digital expandida, que incorpora gêneros emergentes e práticas não só da esfera do experimento estético (ficção hipertextual, poesia generativa, etc.), como também dos usos cotidianos (memes e posts, por exemplo).
COMO CITAR ESTE VERBETE:
CATRÓPA, Andréa. Escritas digitais. In: CATRÓPA, Andrea; PEREIRA, Vinícius Carvalho; ROCHA, Rejane (orgs.). Glossário – LITDIGBR – Literatura Digital Brasileira. 2025. Disponível em: https://glossariolitdigbr.com.br/02-escritas-digitais/. Acesso em: dia/mês/ano.